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CONTRATAÇÕES PÚBLICAS PELA LEI Nº 13.979/20 (COVID-19)

Roberto Silva Soledade
(Diretor Técnico da AFINCO)

 

A recente situação de emergência de saúde pública de importância internacional, decorrente do coronavírus (covid-19) e classificada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde – OMS, vem projetando seus efeitos no mundo jurídico. Todos os setores vêm sentindo o impacto da crise, que modifica substancialmente várias premissas das relações jurídicas de um modo geral. Na área das contratações públicas não haveria de ser diferente. O presente ensaio objetiva dar uma visão panorâmica a respeito das normas jurídicas, até então editadas pelo Governo Federal, que incidem diretamente nos processos de contratação que têm como objetivo mitigar os efeitos nocivos da situação emergencial.

Nesse sentido, o primeiro movimento legislativo de disciplina própria para o atendimento dessas situações foi a edição da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19). Na sua versão original, o tema se restringia ao seu art. 4º, que estabelecia: “Fica dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei”. E nada mais era dito, além de dois parágrafos no dispositivo!

Por conta do seu teor bastante genérico, o impacto da inovação foi muito tímido no âmbito da Administração Pública em geral, vez que os órgãos e entidades permaneceram se valendo da clássica e consolidada hipótese de dispensa de licitação prevista no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93, para fins de contratação de compras ou serviços caracterizados como emergenciais. Contudo, com o advento da Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, tanto o art. 4º da Lei nº 13.979/20 sofreu alteração na sua redação, como foram introduzidos nove novos artigos (arts. 4º-A a 4º-I). Vejamos, portanto, cada um desses dispositivos, sinalizando os aspectos mais relevantes em cada um deles.

Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei.
§ 1º A dispensa de licitação a que se refere o caput deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
§ 2º Todas as contratações ou aquisições realizadas com fulcro nesta Lei serão imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores (internet), contendo, no que couber, além das informações previstas no § 3º do art. 8º da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal do Brasil, o prazo contratual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
§ 3º Excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

De plano, pode ser observado que além de modificar a redação do caput do art. 4º, a MP 926/20 acrescentou um parágrafo inexistente na versão original (§ 3º). De um modo ou de outro, o dispositivo contempla hipótese de dispensa de licitação, que extrapola o extenso rol de situações previstas no art. 24 da Lei nº 8.666/93. Logo, por conta do critério da especialidade, no tocante a ações relacionadas ao enfrentamento do covid-19 o art. 4º da Lei nº 13.979/20 se sobrepõe ao art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93.

Com relação ao caput o âmbito de aplicação foi ampliado de “aquisição de bens, serviços e insumos de saúde” para “aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência”. A despeito da aparente singeleza da mudança, resta claro que agora poderão ser adquiridos não apenas objetos da área de saúde, mas todo e qualquer objeto destinado ao enfrentamento da emergência. A título de ilustração, a eventual e urgente necessidade de fornecimento de cestas básicas, que não são insumos de saúde, para famílias em situação de vulnerabilidade social poderá ser atendida pela via da dispensa de licitação sob comento.

O § 1º do artigo prevê que a aplicabilidade da nova hipótese de dispensa de licitação é temporária, e somente poderá ocorrer enquanto perdurar a emergência de saúde. O limite temporal está predeterminado nos §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei nº 13.979/20, ao prever que a duração da situação emergencial será fixada por ato do Ministro da Saúde, que não poderá ser superior ao prazo declarado pela OMS.

O § 2º trata da publicidade das aquisições e contratações e não guarda semelhança com o procedimento previsto art. 26 da Lei nº 8.666/93, para fins de formalização das dispensas. Ao invés de manter a exigência de publicação prévia do ato da dispensa na imprensa oficial para sua eficácia, no caso da Lei nº 13.979/20 as informações serão disponibilizadas na internet imediatamente após a conclusão do processo.

Por fim, o § 3º, mesmo estando topicamente situado num artigo que trata de dispensa de licitação, é claramente uma hipótese de inexigibilidade de licitação, caracterizada pela necessidade de adquirir o bem ou serviço junto a um fornecedor exclusivo. Embora essa situação de inviabilidade de competição esteja tipificada no art. 25, inciso I, da Lei nº 8.666/93, o diferencial aqui é o permissivo para que se contrate o fornecedor mesmo que ele esteja submetido a declaração de inidoneidade ou suspenso de contratar com o Poder Público. Trata, portanto, de um caso de suspensão dos efeitos de penalidades administrativas aplicadas com base no art. 86, incisos III e IV, da Lei nº 8.666/93 ou no art. 7º da Lei nº 10.520/02.

Art. 4º-A A aquisição de bens e a contratação de serviços a que se refere o caput do art. 4º não se restringe a equipamentos novos, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido.

Dada a possível limitação em obter equipamentos novos para fazer frente ao número projetado de pessoas infectadas, o art. 4º-A apresenta a possibilidade de adquirir equipamentos usados, com a condição do fornecedor se responsabilizar pelas plenas condições de uso e pelo funcionamento do bem. Embora legítima e compreensível a preocupação do legislador, a aquisição de equipamentos usados gera um problema no tocante à equalização do objeto, pois sendo o critério de escolha da proposta o menor preço bens de diferentes idades serão comparados entre si sem levar em consideração o tempo de uso.

Art. 4º-B Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta Lei, presumem-se atendidas as condições de:
I – ocorrência de situação de emergência;
II – necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;
III – existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e
IV – limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência.

Esse dispositivo traz uma diferença substancial em relação às exigências contidas no parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/93, no tocante à forma de instrução do processo administrativo da dispensa de licitação. Enquanto pela Lei de Licitações no processo da dispensa a situação emergencial necessita ser caracterizada (art. 26, parágrafo único, inciso I), inclusive do ponto de vista documental, aqui na Lei nº 13.979/20 tal contexto é presumido. A regra é de suma importância, tanto para garantir maior celeridade nos processos, quanto dar maior segurança jurídica aos agentes públicos responsáveis pelas contratações.

Art. 4º-C Para as contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, não será exigida a elaboração de estudos preliminares quando se tratar de bens e serviços comuns.

A supressão da exigência de estudos preliminares se aplica, sobretudo, aos órgãos e entidades integrantes da Administração Federal, que se encontram submetidos às disposições da Instrução Normativa nº 5, de 26 de maio de 2017. Prevê o seu art. 20, inciso I, que os estudos preliminares consistem na primeira etapa do planejamento da contratação, ao passo que o art. 24 disciplina a sua elaboração. Dessa forma, para as contratações decorrentes da Lei nº 13.979/20 a fase de planejamento deverá ser sintetizada ao máximo, inclusive com a dispensa dos estudos preliminares.

Art. 4º-D O Gerenciamento de Riscos da contratação somente será exigível durante a gestão do contrato.

No caso do gerenciamento de riscos, também exigido pela IN nº 05/2017 como etapa do processo de planejamento, a nova legislação desloca a sua exigência para a fase de execução do contrato, não sendo, portanto, peça indispensável para licitar ou mesmo instruir a dispensa de licitação.

Art. 4º-E Nas contratações para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência que trata esta Lei, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado.
§ 1º O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado a que se refere o caput conterá:
I – declaração do objeto;
II – fundamentação simplificada da contratação;
III – descrição resumida da solução apresentada;
IV – requisitos da contratação;
V – critérios de medição e pagamento;
VI – estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros:
a) Portal de Compras do Governo Federal;
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; e
VII – adequação orçamentária.
§ 2º Excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, será dispensada a estimativa de preços de que trata o inciso VI do caput.
§ 3º Os preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput não impedem a contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços, hipótese em que deverá haver justificativa nos autos.

Via de regra, os processos contratação devem ser formalizados com a prévia elaboração de projetos básicos, nos termos da Lei nº 8.666/93, ou de termos de referência, nos casos submetidos à Lei nº 10.520/02. Nesse sentido, um importante balizador é a IN nº 05/2017 que oferece parâmetros objetivos para a confecção desses dois documentos. Para efeito das contratações amparadas na Lei nº 13.979/20, seja de forma direta ou por meio de licitação, é admitida a adoção de versões simplificadas de projeto básico e de termo de referência. O § 1º do art. 4º-E elenca os elementos que deverão estar contidos nesses documentos simplificados, o § 2º admite que excepcionalmente, mediante justificativa da autoridade competente, se dispense a estimativa de preços e, por fim, o § 3º possibilita a contratação por valores acima da estimativa, justamente em razão da premente possibilidade oscilação nos preços por conta da dinâmica atípica da relação oferta e procura no momento atual.

Art. 4º-F Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigência de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do art. 7º da Constituição.

Nesse dispositivo temos mais uma exceção à regra, qual seja a ampla flexibilização da documentação de habilitação, prevista nos arts. 27 a 31 da Lei nº 8.666/93. Em que pese os §§ 1º e 7º do art. 32 da Lei Geral de Licitações prever a possibilidade de dispensa da documentação de habilitação, sobretudo nos casos de fornecimento de bens para pronta entrega, na prática dificilmente se verifica a aplicação dessa faculdade.
De acordo com o atual regramento especial, a autoridade competente, uma vez deparada com restrições de fornecedores ou prestadores de serviços, poderá dispensar toda a documentação de habilitação, à exceção de: (i) prova de regularidade relativa à Seguridade Social e (ii) cumprimento do art. 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal (não empregar menor de 16 anos). Como o segundo requisito é materializado mediante simples declaração do interessado (vide Decreto nº 4.358/02), interessa-nos mais a questão da Seguridade Social. Apesar da exigência da certidão especificada estar prevista no art. 29, inciso IV, da Lei nº 8.666/93, atualmente a prova de regularidade perante o INSS se dá no bojo da Certidão de Débitos Relativos a Créditos Tributários Federais e à Dívida Ativa da União. Assim, ainda que o art. 4º-F admita a dispensa da documentação relativa à regularidade fiscal, na prática não projetará efeitos no âmbito da Fazenda Nacional, uma vez que hoje a certidão conjunta emitida pela Secretaria da Receita Federal trata tanto das contribuições previdenciárias (art. 29, inciso IV), quanto dos tributos e contribuições federais (art. 29, inciso III).

Art. 4º-G Nos casos de licitação na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, os prazos dos procedimentos licitatórios serão reduzidos pela metade.
§ 1º Quando o prazo original de que trata o caput for número ímpar, este será arredondado para o número inteiro antecedente.
§ 2º Os recursos dos procedimentos licitatórios somente terão efeito devolutivo.
§ 3º Fica dispensada a realização de audiência pública a que se refere o art. 39 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para as licitações de que trata o caput.

Fugindo à temática da dispensa em caráter emergencial, a Lei nº 13.979/20 se preocupou também em dar celeridade às licitações processadas na modalidade pregão, independente de ser presencial ou eletrônico, permitindo a redução os prazos procedimentais à, no máximo, metade daqueles fixados na Lei nº 10.520/20. Assim, o prazo entre a publicação do aviso e a data de realização da sessão (art. 4º, inciso V) poderá ser reduzido de 8 (oito) para 4 (quatro) dias úteis.

No caso do prazo para apresentação das razões por escrito do recurso administrativo (art. 4º, inciso XVIII), ao invés dos 3 (três) dias o prazo cai para 1 (um) dia, em razão do disposto no § 1º do art. 4º-G. Ademais, o § 2º do mesmo artigo atribui ao recurso apenas o efeito devolutivo, não tendo, portanto, o efeito suspensivo previsto no art. 109, § 2º, da Lei nº 8.666/93. Com essa sistemática, surge a possibilidade de se concluir a fase externa do pregão em até 4 (quatro) dias úteis, por conta da ausência de efeito suspensivo dos recursos.

Situação interessante diz respeito ao prazo para impugnação do edital da licitação, no tocante à sua redução pela metade. Na verdade, seja pelo art. 41, § 2º, da Lei nº 8.666/93, seja pelo art. 24 do Decreto nº 10.024/19, a contagem desse prazo se dá “de trás para frente”. Com isso, uma maior aproximação do prazo final em relação à data de realização de abertura da licitação, decorrente da redução para 1 (um) dia útil, aumenta a significativamente a possibilidade de impugnações ao edital, além de dar menos prazo para que a Administração responda essas impugnações. Em respeito à intenção do legislador de buscar dar maior celeridade ao pregão, parece-nos que nesse caso específico a melhor solução é a prevalência do prazo de 2 (dois) dias úteis da Lei nº 8.666/93, até mesmo porque temos as nossas ressalvas quanto à legalidade estrita do prazo fixado no Decreto nº 10.024/20.

Já o § 3º determina que, ainda que a futura contratação tenha valor estimado acima de R$ 330.000.000,00 (trezentos e trinta milhões de reais), fica dispensada a realização da audiência pública de que trata o art. 39 da Lei nº 8.666/93.

Art. 4º-H Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública.

Nas dispensas emergenciais amparadas no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/93 existe a conhecida limitação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para execução dos contratos, vedada expressamente a possibilidade da sua prorrogação. No caso da Lei nº 13.979/20 o prazo limite de vigência de 6 (seis) meses não destoa muito da regra geral, embora a novidade aqui seja o permissivo para prorrogação por períodos sucessivos, enquanto mantida a necessidade de responder aos efeitos da situação emergencial.

Art. 4º-I Para os contratos decorrentes dos procedimentos previstos nesta Lei, a administração pública poderá prever que os contratados fiquem obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto contratado, em até cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.

O art. 65 (vide inciso I, alínea “b”, e § 1º) da Lei nº 8.666/93 trata da possibilidade de alteração unilateral dos contratos administrativos, estabelecendo que o contratado é obrigado a suportar acréscimos ou supressões ao objeto no limite de 25% (vinte e cinco por cento) do seu valor. Em se tratando de contratos firmados com base na Lei nº 13.979/20, por dispensa ou licitação, abre-se a possibilidade de inclusão de cláusula que amplie para 50% (cinquenta por cento) os limites de acréscimos ou supressões.

Podemos concluir que as mudanças introduzidas pela Lei nº 13.979/20 no campo das contratações públicas são bastante diversificadas, embora todas elas estejam focadas no enfrentamento da situação emergencial. Muito provavelmente surgirão outras medidas, em função do cenário projetado de agravamento da crise. O desafio para os operadores dessa área, inclusive para os órgãos de controle, é ter o bom senso para entender que estamos vivendo um momento atípico, que exige atitudes voltadas para a máxima eficácia, que muitas vezes implicarão em rever conceitos tradicionais arraigados. Não se trata de pregar a liberdade absoluta de atuação, mas apenas lembrar que o ordenamento jurídico está subordinado a diversos princípios, todos com o seu grau de importância, mas nenhum deles com estatura suficiente para criar embaraços à garantia do direito à vida. Que tenhamos a sabedoria, portanto, para mitigar os riscos ora existentes.

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